GIOVANNA FREISINGER

A foto de Lula por trás de um trinco no vidro do Palácio do Planalto foi a capa da edição da Folha de S. Paulo do dia 19 de janeiro, ilustrando a cobertura após os ataques terroristas sofridos na semana anterior. Como é indicado em sua legenda no jornal, a foto foi produzida com técnica de múltipla exposição.

A técnica consiste na sobreposição de duas ou mais imagens em um mesmo fotograma, realizada diretamente na câmera, na hora da foto. Esse método surgiu com as câmeras analógicas, com as quais era possível travar o filme manualmente para registrar mais de um clique sobre ele.

Após sua divulgação na primeira página do jornal, o retrato de autoria da fotojornalista Gabriela Biló causou polêmica e levantou discussões pela internet sobre qual mensagem estaria sendo transmitida.

As opiniões se dividiram entre aqueles que consideram o retrato impróprio, devido ao momento político, o acusando de incitar violência, ser de mau gosto e construir um cenário de governo fragilizado, e aqueles que, por outro lado, enxergam a foto como a semiótica perfeita de um golpe mal sucedido, um retrato de resistência e, ao mesmo tempo, a expressão de medos públicos e da gravidade do que se passou.

A autora se pronunciou, logo em seguida, por um texto publicado no jornal e um vídeo nas redes sociais da Folha. “Pra mim, a foto significa que a vida continua em Brasília.” 

“Apontei a câmera para os trincos do Palácio e depois para o presidente que estava no andar de baixo. Esperei. Esperei por uma expressão que simbolizasse aquilo que eu estava lendo: o Palácio resiste.

O presidente ajeitou a gravata e fiz o segundo clique. Duas realidades, separadas por cerca de 30 metros, mas que já existiam no simbolismo que o fotojornalismo permite, se juntaram na minha câmera”, explica em seu texto.

A imagem foi muito comparada, tanto por críticos quanto defensores, à famosa foto de Dilma Rousseff “transpassada” por uma espada. Fosse para condenar o tom ou para elogiar o simbolismo. 

“Touché”. Foto publicada no jornal O Estado de S.Paulo em 21 de agosto de 2011 – Wilton Júnior/AE

A foto de Dilma também causou polêmica em sua época, apesar da aclamação da imprensa, conquistando o título de “imagem da semana” pela revista VEJA e, posteriormente, o Prêmio Internacional de Jornalismo Rei da Espanha e o Prêmio Esso de Fotojornalismo no Brasil.

Contudo, essa foto é um exemplo de domínio do enquadramento para a transmissão de uma mensagem com a fotografia. Apesar de simular algo que não aconteceu (o golpe com a espada), o instante capturado não é alterado de qualquer forma, como o de Biló é. Apenas cria uma ilusão de ótica com um fato físico.

Manipular imagem. Pode?

“O bom fotojornalismo não é só a captação da cena real, que uma câmera de segurança pode fazer. O bom fotojornalismo tem linguagem, tem informação por trás, capta as nuances da notícia”, argumenta Gabriela Biló em seu vídeo publicado nas redes sociais da Folha.

Ângulo, saturação da luz, flash, ângulo do flash, velocidade do obturador, milimetragem da lente, desfoque, corte da fotografia e posicionamento são algumas das ferramentas disponíveis que se combinam para o resultado final de uma imagem e permitem ao autor escolhas que melhor traduzam o fato e sua perspectiva.

Para Denis Porto Renó, jornalista, fotógrafo, documentarista e livre-docente em Ecologia dos Meios e Narrativas Imagéticas pela Unesp, “o fotojornalismo tem a capacidade de congelar um instante, dando ênfase nele e comprovando o acontecimento. Pelo fotojornalismo, “presenciamos” um acontecimento. Sempre temos a visão do autor, pois trata-se da escolha por um enquadramento do fato. O que não podemos, como profissionais que somos, é criar um fato. Isso não é jornalismo. É mentira”.

A técnica de múltipla exposição e sua presença no fotojornalismo não são recentes nem incomuns (ainda que mais raro em pautas políticas). A capa da Folha do dia 14 de janeiro contou com uma foto de Marina Silva, também por Gabriela Biló, que utiliza essa técnica.

Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, durante entrevista à Folha, em Brasília; foto foi feita com técnica de múltipla exposição – Gabriela Biló/Folhapress


“Assim como os infográficos nos anos 1980, a Folha tem se deslumbrado recentemente com uso desmedido da técnica de edição chamada de “múltipla exposição. Não deixa de ser uma ferramenta importante para a prática diária da atividade jornalística, sobretudo quando há propósitos artísticos, como na montagem de reportagens para cadernos culturais ou esportivos; ou para ilustrar matérias especiais cuja natureza pode impor liberdade estética”, explica William Robson Cordeiro, doutor em jornalismo e professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), em sua coluna para a própria Folha de S. Paulo, após a controvérsia da capa do dia 19.

“Porém, sua utilização deve ser escrutinada sob princípios éticos, a fim de que a percepção da audiência compreenda, de imediato, que está diante de montagem, não da realidade. A Folha não levantou tal reflexão [com a foto de Lula], impondo uma imagem controversa, criada a partir da imaginação de quem a projetou”, continuou. 

Para o lado opositor dessa discussão, as liberdades criativas tomadas por Gabriela Biló em sua produção, desclassificam totalmente seu resultado enquanto fotojornalismo. “Se há uma manipulação, então não é jornalismo”, afirma Denis Porto Renó. “Pela foto, a Biló demonstrou-se uma ótima artista, mas uma péssima jornalista. Parece que esqueceu-se dos princípios da profissão.”

O professor explica seu ponto de vista. “Eu condeno esse tipo de recurso no fotojornalismo. A fotografia é arte, mas, quando adotada pelo jornalismo, devem ser respeitados os princípios do jornalismo. Ela [Biló], inclusive, fala que quis dizer uma coisa, mas foi interpretada de outra forma. No jornalismo, não podemos dar margem às múltiplas interpretações. Deixamos isso para os escritores.”

“Aquela fotografia não informa. Ela desinforma. Não se trata de buscar um ângulo para provocar uma leitura. É a manipulação da cena, a criação de um fato que, de fato, não ocorreu. Abominável, quando vinda de uma jornalista”, complementa Denis.

Diante das contestações recebidas, Biló manteve a defesa de sua fotografia em seu pronunciamento, mas o concluiu se colocando a favor do debate. “Como autora da foto, não vou dizer o que as pessoas têm que sentir, respeito como a foto chegou a quem viu violência. Mas a verdade não é uma só. Como a autora da foto, aceito as críticas. Ninguém é obrigado a ver o mundo da mesma forma que eu. Gosto da abertura do debate, inclusive sobre as leis não escritas do fotojornalismo.”

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