Por Amanda Trentin
Você já se perguntou o que é representatividade? A partir de uma simples busca no Google, é possível encontrar uma breve definição do Dicionário Oxford Languages logo na primeira página: o termo é definido como “qualidade de alguém, de um partido, de um grupo ou de um sindicato, cujo embasamento na população faz com que ele possa exprimir-se verdadeiramente em seu nome”.
Entretanto, a definição acima não desenvolve a raiz do conceito. Para compreendê-lo em sua totalidade, uma noção mais aprofundada será apresentada.
Na visão do roteirista e mestrando em comunicação pela Unesp João Marciano Neto, “representatividade trata-se de uma condição superior à inclusão”. Isso porque “diferente da inclusão, onde determinados personagens são inseridos apenas como tótens, na representatividade é permitido que o corpo expresse sua bagagem cultural e histórica (suas questões próprias) com o menor grau possível de mediação do olhar ‘padrão’ (homem, europeu-estadunidense, branco, heterossexual, de classe média, cristão) e em alguns casos até livre dele em produções totalmente encabeçadas e executadas pelos grupos que usualmente não compõem o perfil ‘padrão’.”
A bandeira da representatividade surge no século XX com os movimentos sociais e demonstrava a vinculação de pessoas a determinados grupos excluídos e segregados em espaços específicos onde prevalecia a discriminação. Porém, tal prática enfrentava uma problemática: embora houvesse a representação em áreas de visibilidade e poder político, essa presença não influenciava na efetivação da autonomia e decisão política que favorecesse o grupo representado.
Por isso, no século XXI, essa forma de representação entra em crise. A explicação para esse fenômeno é esclarecida pelo professor da Unesp e Vice-diretor da FAAC Juarez Xavier, o qual afirma que “às vezes, a mera representação não implicava em mudanças do status social do grupo social representado. Havia ali uma mulher, mas não tinha nenhuma mudança na política em relação às mulheres, tinha o negro, mas não havia mudança em relação aos negros, tinham pessoas segregadas, pessoas com deficiência e não tinha nenhuma política que implicasse mudanças substantivas nesse processo.” Dessa forma, a representação e os representados entravam em contradição.
Nesse sentido, hoje se fala em três dimensões de representações. A primeira é a de perversidade, isto é, há um representante de um tecido social numa Instituição, mas essa e o próprio representante não respeitam o conjunto marginalizado e mantém uma política de organização que colabora com a continuidade da punição e segregação dele. “Então, a perversidade está na medida em que uma pessoa que está à frente desse grupo, dessa Instituição reproduz a violência contra o grupo que supostamente ela estaria representando”, diz Juarez.
Existe também a de fabulação, ou seja, o representante que lidera o projeto não tem nenhuma função política que corrobora para o impacto no comportamento e na ação. É uma representação vazia. “É uma representação que não consta com nenhum status de responsabilidade”, comenta.
Por último, há a de participação. Esta se refere a pessoas que estão à frente de um determinado lugar de visibilidade e poder políticos e trazem para discussão indivíduos desse mesmo grupo com o objetivo de formular ideias e práticas que fortaleçam sua presença e garantam ganhos concretos e materiais.
O professor Xavier completa que “o representante está nesses espaços para assegurar a inauguração de políticas públicas que vão ao encontro da necessidade do grupo social ao qual ele pertence. É uma forma dessa população se sentir representada dentro de um processo qualquer participando efetivamente na definição dos objetivos das políticas, das definições das ações favorecedoras dos seus direitos e das ações que correspondem às suas expectativas, necessidades, desejos e sonhos”.
No século XX, essas três formas citadas aparecem significativamente nas propagandas, novelas, teatros e, decisivamente, nos cinemas. De fato, o cinema tem um papel indubitável na constituição das imagens de identificação. “Há uma teórica norte americana, Patrícia Hills, a qual diz que essas são as chamadas Imagens de Controle, que são imagens produzidas nos filmes, na publicidade, nos meios de comunicação de modo geral e cristaliza uma certa percepção social sobre o papel social desses grupos na estrutura social”, cita o professor.
Nesse contexto, as produções cinematográficas são responsáveis por fundar identidades sociais e políticas ao construir imagens de controle que se relacionam ao mecanismo de associação. Assim, quando o cinema propõe cenas que retratam frequentemente um determinado agrupamento social de maneira estereotipada, essa visão se torna comum e incita a manutenção do preconceito ao apoia os discursos de ódio e supremacia pautados no estigma contra as minorias sociais – como os negros, LGBTQIA+, indígenas, deficientes auditivos e visuais, mulheres, entre outros.
A exemplo disso, esse processo é notório quando mulheres negras atuam como personagens que ocupam um papel de doméstica ou quando homens negros atuam como criminosos e são ligados à narrativas de violência. “Isso cria uma imagem de controle extremamente prejudicial à população negra”, adiciona Juarez.
Xavier ainda exemplifica as consequências dessa atividade na sociedade: “Ainda hoje na sociedade norte americana, a ideia cultural do homem negro como estuprador é um dos fatores fundamentais pro alto índice de encarceramento de homens negros” – noção que foi provocada pelo filme “O nascimento de uma nação”, o qual criou a concepção de combate ao direito dos negros e incentivou o discurso supremacista branco através de divulgar, na produção, a imagem de um homem negro estuprador.
A representatividade nas telas da Marvel
Por outro lado, devido toda a discussão proposta no atual século sobre o tema da representatividade, existem companhias cinematográficas que já estão tentando mudar as narrativas imagéticas negativas desenvolvidas pelo cinema, como é o caso do Universo Cinematográfico Marvel.
O que conhecemos como Companhia Marvel no presente, em verdade, teve seu início em 31 de agosto de 1939, nomeada a princípio como Timely Comics. Foi criada por Martin Goodman e publicava estórias em quadrinhos sobre super-heróis. Os primeiros foram Tocha-Humana e Namor.
Na década de 1950, a empresa passou a diferenciar-se da concorrência ao apresentar personagens que tinham características próximas do público consumidor, como o Homem-aranha – criado por Stan Lee e Steve Ditko -, um adolescente de classe média que lida com problemas da idade quando não está na posição de herói. Sobre isso, ainda houve o lançamento do grupo X-Men, que retrata nos mutantes pautas sobre preconceito. O Demolidor, por exemplo, era deficiente visual e enfrentava problemas cotidianos correlacionados à sua deficiência.
“Não vou negar que a Marvel seja uma das poucas editoras com tato quanto à diversidade. Se tratando do circuito mainstream, ela pode se gabar por pioneirismos quanto às identidades de seus super-heróis e por um de seus títulos mais famosos, X-Men, ser um debate aberto contra a discriminação”, compartilha João Marciano.
A busca da Marvel por um público que se identifica com o que vê, tem sua razão na conquista de um mercado consumidor amplo. Nessa instância, Marciano adiciona que tal postura de produzir conteúdos que geram identificação com os que assistem a Marvel não é “inocente e altruísta”, pois “há por trás uma estratégia comercial de conquista de públicos. Sim, a Marvel pode até ser menos conservadora e tímida que a DC, e até podemos afirmar que há autores e desenhistas engajados na Marvel, mas ainda continua sendo uma empresa e como tal, interessada em lucro”.
Historicamente, o século XX abrigou o evento da grande revolução econômica, que foi a invenção da classe média – coletividade que compra “os serviços, informação, acesso à cultura, saúde e território. É a classe que sustenta seus privilégios transformando-os em direitos a partir do cenário político”, pronuncia Juarez Xavier. Logo, a classe média preocupa o Universo Cinematográfico Marvel (MCU) no âmbito do consumo. “Quando você pega o histórico da Marvel, ela vai ao encontro das expectativas da classe média”, conclui.
“O super-homem é um homem branco, com a história muito espelhada com a vida de Jesus Cristo, um extraterrestre que vem pra Terra e é capaz de mudar, transformar e modificar todos os valores fundamentalmente brancos narrativos da supremacia patriarcal, capitalista”, exemplifica o professor.
Todavia, esse modelo se esgota, uma vez que a classe média se pluraliza por meio das lutas pelos direitos políticos conquistados, o que é um avanço. Portanto, no fim do século XX e início do XXI, há uma discussão sobre a marginalização da porção social desprivilegiada e “não se aceita mais, como se aceitava no século XX e XIX, que é natural que esses grupos estejam excluídos de participação política, social e econômica”, adiciona.
Então, com o crescimento do poder de compra da parcela marginalizada, há um impulso mercadológico por parte da Marvel para compor materiais fílmicos que interpretem o dia a dia, expectativas e idealizações daquela. Por esse motivo, passa-se a ter o herói negro, o herói asiático, latino-americano, muçulmano, etc – como em Pantera Negra, Shang-Chi, o futuro filme que será estrelado em 2024, El Muerto, e a Miss Marvel (Kamala Khan), respectivamente.
Tendo isso em vista, o MCU resgata mecanismos culturais para compor as cenas e inventar uma atmosfera de identificação. “O que gera identificação é a composição, ou seja, como esses elementos são dispostos, que discursos eles articulam quando combinados e em movimento”, propõe Marciano.
Contudo, a Marvel ainda peca em algumas obras ao ser incapaz de tratar culturas com impessoalidade e incorporá-las com um toque estadunidense: João Marciano incita que “a série da Miss Marvel Kamala Khan carrega inúmeros elementos visuais e musicais da cultura muçulmana, mas falha ao tratá-los superficialmente, sob uma ótica estadunidense do que seria a cultura muçulmana, apaziguando os conflitos da identidade cultural “mestiça” da Kamala (algo explorado bem nos quadrinhos) por meios de elementos transculturalizados, ou seja, ‘contaminados’ pela cultura urbana estadunidense”.
Mas, “Shang-Chi, funciona justamente por balancear o contemporâneo com a tradição, revertendo estereótipos e até realizando retratações (a cena em que Wenwu discursa sobre o equívoco do nome Mandarim)”, contraria Marciano.
Em adição, Pantera Negra lança no mundo do cinema o afrofuturismo, “o filme traz elementos conceituais para fundamentar a teoria do afrofuturismo – seria uma população negra que superou a violência e a brutalidade da escravização e do racismo e cria condições para poder exercer plenamente sua humanidade”. Então, “as figuras representadas no Pantera Negra fazem com que se crie subsunçores capazes de reconstruir a humanidade”, acentua Xavier.
Em suma, nos dois casos – Shang-Chi e Pantera Negra – a Companhia Cinematográfica Marvel se beneficia das tradições. Marciano acusa que “essas referências são frutos de movimentos culturais que se materializam num histórico de pressão comercial e confronto imagético. Toda imagem, portanto, é um objeto apropriável e resignificável em disputa”.
Em relação à representatividade, de acordo com Marciano, os filmes da Marvel dificilmente atuam no cerne do desenvolvimento das lutas sociais. “Não vou negar a grande importância e os avanços que o crescimento e o cuidado com a representatividade têm tido na última década, no entanto, preciso concordar com Adorno no sentido de que Hollywood trabalha em função de uma dominação social pela homogeneização, no caso, apagar focos de incêndios como os ativismos”.
“Na questão feminina, Xialing constrói sua própria organização em Macau, mas só assume a do pai pela negação de Shang-Chi em assumir o legado. Capitã Marvel sofre de um mal bizarro, pois todo seu empoderamento não a salva de ser uma Mary Sue, ou seja, é uma personagem plana e que não se desenvolve muito ao longo do enredo. A série da She-Hulk apresenta uma crítica genial contra a misoginia e tem uma protagonista carismática e afirmativa, mas sofre de um roteiro mais interessado em piadas do que realmente problematizar e enfrentar a questão. Wanda era uma das poucas personagens a ter um desenvolvimento ao longo do MCU, mas nem isso a salvou do clichê do ‘perigo da mulher ‘poderosa’ em Multiverso da Loucura. A Hope Van Dyne (Vespa) pode ser muito mais preparada e agora dividir os títulos das sequências, mas quem derrota o vilão no final é o Homem-Formiga”, critica João.
Em contraponto, Juarez traz a percepção de que “houve aspectos importantes no desenvolvimento político e construção de resistência” por conta dessas produções. “Muitas vezes o grau de segregação é tão grande em determinados grupos e é tão anulado em determinadas situações e circunstâncias, que, às vezes, a representação deles em determinados espaços acaba sendo positiva”.
Ao escutar alguns fãs da Companhia, Isis da Silva Bianco aborda como ela se sente ao ver um personagem com quem se identifica: “pra mim quanto mais atravessado por diversidade é um personagem, mais real ele parece. Então ver um/a personagem mulher ou bissexual ou que tem algum problema psicológico faz toda a diferença pra mim. A gente sai do cinema com parte da personalidade do personagem absorvido”.
Gabriela Abreu, que também é fã, revela que “ser representada é poder me enxergar no que estou assistindo, seja a partir da forma física, da personalidade e dos elementos sociais que possam me envolver. Pra mim a Marvel me deu a oportunidade de poder olhar pra um personagem e falar ‘existe uma comunidade aqui pra mim’”.
Isso demonstra que o Universo Cinematográfico Marvel trabalha com questões de representatividade ao permitir que os consumidores das produções fílmicas possam sentir que estão acolhidos, mas não podemos esquecer que, acima de tudo, como um cavalheiro do capitalismo, seu propósito foi a conquista mercadológica da classe média, que é a consumidora massiva dos seus produtos.
