FLÁVIA GRACINDA

Na Copa do Mundo de 2022, tornou-se evidente a participação em peso de atletas negros em diversos times, seja em sua completude como nos times da África, como também em sua maioria, quando olhamos para a Seleção francesa e para a Seleção brasileira. 

Como é possível imaginar, não foi fácil chegar até ali. Em 1919, no Sul-Americano, hoje conhecido como Copa América, a Seleção Brasileira conquistou o seu primeiro título e marcou o início da popularização do futebol no país. A vitória foi contra o Uruguai e o gol decisivo foi marcado por Arthur Friedenreich, que anos depois seria reconhecido como o primeiro homem negro craque da seleção brasileira.

No ano de 1920, em um amistoso que ocorreu na Argentina, a equipe brasileira sofreu um dos primeiros ataques racistas através de um dos jornais locais que  publicou uma charge com esse teor. Junto a isso, veio o primeiro grito contra esse crime partindo de atletas e dentro do futebol brasileiro, onde alguns dos jogadores se recusaram a jogar. 

No ano seguinte, quando Epitácio Pessoa era presidente do país, a história que ocorre hoje se repetiu, ou melhor, teve o seu início, onde quem sofre é a vítima e não o agressor. Epitácio havia recomendado que apenas jogadores brancos representassem a seleção no Sul-Americano, com a justificativa de preservar a reputação do país no exterior. Com isso, Arthur  Friedenreich, que ao longo da carreira havia marcado 595 gols em 605 jogos, estava fora do campeonato.

 Essa decisão não foi totalmente aceita pela população, na época o jornal O País denunciou essa posição do presidente e o escritor Lima Barreto abordou a questão em uma crônica. Hoje, não temos a proibição de jogadores negros em campo, seja ele onde for, mas o racismo continua presente em muitos casos.

Quando olhamos para a Copa do Mundo deste ano, é perceptível as diversas mudanças, e uma delas aconteceu na parte técnica das seleções, onde pela primeira vez todos os times do continente africano contaram com treinadores locais. 

“A presença de treinadores africanos à frente das equipes e nas seleções de países africanos é um grande movimento que tem sido realizado”, diz Juarez Tadeu de Paula Xavier, ativista antirracista, professor do curso de Jornalismo e vice-diretor da Faac/Unesp de Bauru. 

Ele explica que um dos principais motivos para que ocorresse essa troca, era que os treinadores europeus não entendiam os valores culturais dos povos africanos e tentavam criar um esquema tático de outro mundo, fora da realidade dos jogadores, o que resultava em péssimos resultados, tanto é que até então poucas seleções africanas tinham conseguido passar na primeira fase da copa do mundo. 

“Houve uma mudança significativa primeiro com Camarões que procurou fazer tais adaptações na comissão técnica, mais tarde a seleção de Gana, que quase foi para a semifinal também fazendo esse debate, essa discussão política e a partir dos bons resultados da seleção do Senegal, da Nigéria, em especial na copa na África, mudou esse conceito, viu-se que era necessário ter treinadores africanos que pudessem compreender a magnitude cultural dos povos africanos”, diz o professor. 

Ele ressalta que as comissões africanas sempre procuraram adequar os jogadores a suas condições técnicas naturais, mostrando que eles poderiam  morar na Europa, fazer atividades pelo mundo afora, mas que eles eram africanos, e a partir disso as comissões começaram a trazer para as seleções jogadores africanos comprometidos com os seus países, com suas culturas, com o enfrentamento ao colonialismo, com enfrentamento ao racismo. 

Atualmente, um dos principais representantes dessa nova concepção citada pelo professor, é Sadio Mané, que hoje atua como atacante no Bayern de Munique, mas é um jogador senegalês e de grande referência. Mané, como é conhecido, é comprometido com o projeto político de enfrentamento ao racismo e valorização da cultura africana e tem feito um trabalho extraordinário de construir escolas e hospitais na sua comunidade.

Juarez relembra uma frase que o jogador disse: “para que eu preciso ter vários carros importados, se para mim o mais importante é contribuir com a condição de melhoramento de vida do meu povo?”. 

Mesmo com toda a evolução dos times africanos no decorrer do tempo, e esse salto que deram no campeonato em 2022, no qual chegaram na semifinal do campeonato, ultrapassando uma linha que parecia utopia para muitos em relação ao continente, o ativista antirracista lembra que “o continente africano não tem o mesmo nível de representação que a Europa tem na FIFA. A Europa é um território relativamente pequeno comparado a África e tem mais seleções europeias do que africanas  no campeonato. A próxima luta dos times africanos é ampliar sua representação e participação na copa do mundo”. 

Cheio de esperança e vendo para onde tudo indica, o professor completa: “espero que no futuro a gente tenha mais seleções africanas identificadas pela luta política do povo africano e que possam ter esse bom desempenho na Copa e em outros esportes. Sonho ver os países africanos com bom desempenho nas olimpíadas, nesses esportes de grande visibilidade, como vôlei, por exemplo. Eu acho que existe a possibilidade de fazer isso, há um investimento nessa direção e eu acredito que num curto espaço de tempo nós vamos criar condições de ter grandes nações africanas representando o povo negro africano nos principais eventos esportivos do mundo”.

Quando se amplia a visão em escala mundial, é notável que muitas vezes o jogador negro/pardo só serve para muitos torcedores quando está fazendo gol pelo time, do contrário servem para ser alvo de duras críticas, piadas de mal gosto e racismo, como canta o rapper Rashid em um trecho da sua música intitulada Estereótipo. Essa situação se torna evidente em jogos nacionais, como aconteceu com Marcelo Aranha em campo, com jogadores que fazem parte de times internacionais como o caso de Vinicius Jr no Real Madrid, e em jogos mundiais como vimos acontecer com o atacante da França, Kingsley Coman, que teve sua rede social recheada de comentários racistas e preconceituosos após perder o pênalti no jogo decisivo para definir o campeão da Copa do Mundo.

“Acho que jogadores negros estão sim ganhando mais espaço, mas na mesma medida em que o preconceito com eles aumenta”, comenta Lucas da Silva Costa, jogador profissional do Grêmio Osasco. 

O professor Juarez Xavier, comenta que na Copa de 90, com Sebastião Lazarone como técnico da seleção brasileira tentando criar uma mentalidade europeia nos jogadores, acabou sendo eugenista e abriu espaço para as manifestações mais racistas que ele tinha tido a oportunidade de ver na televisão aberta. “Lembro ainda que nessa copa, por conta de todo esse racismo explicito pautado pela convocação, o Chico Anisio chegou a fazer comentários nessa linha responsabilizando ainda, depois de 40 anos, o Barbosa pela derrota do Brasil na copa de 1950, em que o Brasil perde de 2 a 1 a final do campeonato para o Uruguai em pleno Maracanã, como se a responsabilidade fosse única e exclusivamente de um goleiro negro”, completa Juarez.

Mas, apesar disso, ainda hoje muitos jovens sonham em jogar o futebol profissional e tem como ídolo jogadores como Neymar, Vini Jr., Mbappe, Richarlison e Pelé, conhecido como rei do futebol, e precisam batalhar bastante para chegar onde eles estão. Lucas Costa, natural de São Paulo, compartilha como é para ele ir em busca desse sonho.

“Estar nesse meio é ótimo, é o meu sonho, mas são mais pedras do que rosas. O mundo do futebol fora dos holofotes é algo fora do comum, são incontáveis as vezes que já presenciei na pele os casos de injustiças tanto raciais quanto em relação ao dinheiro”. 

Hoje, com 19 anos, ele faz parte do time profissional do Grêmio Osasco e relata que para alçar voos maiores não é fácil. “Se você não tiver realmente uma condição monetária para subir até o “topo” precisa treinar e batalhar cem vezes mais que os outros para ter a chance de mostrar potencial, mas mesmo com toda essa sujeira eu consigo enxergar beleza no esporte, futebol é um esporte magnífico, traz brilho nos olhos, o entusiasmo de que um jogo pode virar a favor ou contra em questão de um segundo de fé ou um segundo de distração, emociona a todos os amantes deste esporte”. 

O futebol está no coração dos brasileiros, seja para aqueles que acompanham times no decorrer do ano, como para aqueles que assistem apenas quando a seleção brasileira entra em campo, e até para aqueles já não tem qualquer ânimo para torcer por ela, mas tira um tempo para ver as seleções africanas em campo independente dos resultados. 

O hexa não chegou ao Brasil desta vez, mas foi possível experimentar emoções de alegria e tristeza com os nossos jogadores em campo, além de ver outras seleções e torcidas brilharem, como as africanas. Não há dúvidas de que a esperança que o professor mostrou ter não é utopia, mas algo que certamente veremos nos próximos anos, seja em relação aos atletas brasileiros, como também para os africanos.

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