GIOVANNA FREISINGER

Se você está na internet, é provável que já tenha esbarrado alguma vez com a expressão “male gaze”, que está sendo usada pra lá e pra cá em discussões online já faz um tempo. Ela pode ser traduzida, de forma literal, como “olhar masculino”. No entanto, é importante compreender que o conceito de “gaze” vai um pouco além, pois implica um olhar distinto, que é fixo, intencional e atento. Mas, afinal, o que é o olhar masculino? 

A ideia não é nova,  o  termo foi cunhado 1975 por Laura Mulvey, crítica de cinema e teórica feminista britânica, em seu ensaio revolucionário “Prazer Visual e Cinema Narrativo”. O termo se refere à perspectiva masculina fetichista e de objetificação que é lançada sobre as mulheres em obras midiáticas.

Personagens femininas representadas através das lentes de homens cisgêneros e heterossexuais costumam assumir uma posição passiva nas histórias, existindo em contraste aos personagens masculinos, participantes ativos da narrativa. Essas mulheres atuam como uma mera ferramenta do roteiro para mover a trama do homem adiante.

Tal noção rouba as personagens dos nuances que constroem uma personagem complexa e dinâmica em sua história, com quem o público possa se identificar. “Por meio de imagens que colocam em primeiro plano atributos físicos, de forma sexualizada, desconsideram-se fatores que compõem as mulheres enquanto indivíduos, e não como objetos de desejo que não têm opiniões, conhecimento, valores, senso crítico, crenças e etc.”, explica Érika Alfaro de Araújo, jornalista e pesquisadora com foco no jornalismo esportivo e suas relações com a questão de gênero.

A problemática em torno do fenômeno do “male gaze” supera a hipersexualização e a objetificação a partir da percepção de que os casos não são isolados, mas o padrão para como as mulheres são representadas na mídia. Com isso, todas as pessoas na nossa sociedade estão condicionadas a enxergar através desse olhar, tanto homens quanto mulheres.

É inevitável, portanto, que os efeitos dessa representação distorcida das mulheres se reflitam na vida real. “Quando pensamos na “vida real”, em como as vivências são afetadas por tais noções, podemos considerar desde a cultura do estupro, que é mantida, entre outros tantos fatores, pela noção de as mulheres estão à disposição da vontade dos homens, até as desigualdades no mundo do trabalho, no qual os salários de mulheres são mais baixos, opiniões femininas são subestimadas e cargos de liderança são ocupados, majoritariamente, por homens. Assim, percebemos que, quando as mulheres são inferiorizadas e colocadas como submissas, os lugares sociais e a experiências delas são limitadas, desiguais e até mesmo violentas”, continua Érika.

Os três olhares

Mulvey separa essa perspectiva em três séries diferentes de olhares associados ao cinema. O da câmera, o do espectador e o dos personagens.

O olhar da câmera é o olhar cinematográfico. Diz respeito a como personagens e histórias femininas são construídas e representadas. Desde a concepção da narrativa até o enquadramento das cenas. Um exemplo recorrente do olhar masculino aqui é, ao apresentar uma personagem feminina, as câmeras apresentarem seu corpo em primeiro lugar. Às vezes com a ajuda de closes, câmera lenta ou fundo musical. 

Esse olhar reflete o problema de que a indústria do audiovisual ainda é um meio dominado por homens, em todos os setores. A maioria dos produtores, roteiristas e diretores trabalhando em grandes projetos hoje são homens. Na história dos Oscars, apenas sete mulheres já foram nomeadas ao prêmio de Melhor Direção, das quais apenas três venceram, todas após o ano 2000. Por isso, é refrescante observar o crescente e cada vez mais notável movimento de valorização de produções femininas por trás de histórias sobre mulheres, em resposta à maior identificação da audiência feminina.

O olhar do espectador é o olhar da audiência, para quem essas histórias são entregues. Se a indústria é composta, majoritariamente, por homens, a maioria dos filmes ainda é feita para outros homens. Mulvey propõe que a representação distorcida das mulheres seja advinda de uma insegurança inconsciente de emasculação dos homens, apelidada por Freud de “angústia da castração”. Para ela, essa noção leva a dois destinos possíveis para as personagens femininas: a desvalorização, para investigá-la e puni-la, de modo capaz de oferecer um olhar de superioridade do homem sobre essa mulher ou a fetichização, a fim da construção de uma mulher não confrontante, que existe para agradar.

O terceiro é o olhar dos personagens, que acontece dentro do plano da narrativa. Mulvey discute o desejo narcisista de identificação, o que justifica como o olhar dos personagens masculinos se comunica com o olhar do espectador. A mulher representada é o objeto que conecta o público à ficção. Por vezes, até se sobressaindo à história principal, como é colocado em seu ensaio: “A presença da mulher é um elemento indispensável para o espetáculo num filme narrativo comum, todavia sua presença visual tende a funcionar em sentido oposto ao desenvolvimento de uma história, tende a congelar o fluxo da ação em momentos de contemplação erótica.” 

Seu próprio voyeur

Influenciando a ficção e a realidade, o olhar masculino se transforma em uma forma de controle. 

A teoria do panóptico de Foucault estabelece como um dos métodos de controle a auto-regulação do indivíduo a partir do medo de estar sendo vigiado, mesmo quando não está. O olhar masculino atua da mesma forma, impondo às mulheres uma performatividade, mesmo quando estão sozinhas. 

Margaret Atwood escreveu um trecho em diálogo com essas ideias em seu livro “The Robber Bride”: “Até fingir que você não está atendendo a uma fantasia masculina é uma fantasia masculina… Você é uma mulher com um homem dentro assistindo a uma mulher. Você é seu próprio voyeur.” 

“Outra ideia interessante é de Kate Manne, autora do livro Down Girl: The Logic of Misogyny. Para ela, ridicularizar, humilhar, zombar, caluniar, difamar, bem como sexualizar mulheres são ações que fazem parte de um movimento misógino, tendo em vista que ela entende a misoginia principalmente como o ramo de “aplicação da lei” de uma ordem patriarcal, que tem a função geral de policiar e fazer cumprir as normas e expectativas regentes”, adiciona Érika. “Logo, podemos dizer que esse olhar masculino, que é misógino, busca inferiorizar, objetificar, submeter e controlar as mulheres para a manutenção das estruturas patriarcais”.

Contudo, ela acredita que há uma saída para as mulheres. “Não se trata de um objetivo facilmente ou rapidamente alcançável, mas que faz parte de uma luta histórica, de séculos, de mulheres e movimentos feministas em diversas partes do mundo.”

“Se pensarmos nos estudos de gênero por exemplo, em que se rejeita o determinismo biológico que atribui um destino social aos sexos, temos que, a partir da noção de que as características limitantes e normativas atribuídas aos gêneros se tratam de construções, as mesmas podem ser transformadas de forma que as vivências se tornem mais livres, mais diversas e mais amplas – e a subordinação feminina seja eliminada. Isto é, o que foi construído por ser desconstruído e mudado. É claro que também devemos ressaltar que o sexo e o gênero estão inseridos em contextos marcados por outros sistemas de dominação, como racismo, xenofobia, classismo, capacitismo, homofobia, transfobia, entre outros. Por isso, a emancipação plena faz parte de uma luta complexa e ampla por justiça social”, conclui a pesquisadora. 

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